Notas de viagem (2012)
por Jorge C Ferreira
Em Arica apanhámos o autocarro. Vamos a caminho do deserto. Já vemos as dunas. Quando saímos do transporte o calor torna-se abrasador.
Depressa fico pegajoso. Dói-me a humidade no corpo.
Bebo mais uma água na tenda do deserto. Olho para aquelas montanhas de areia, sagradas dunas. Atrevo-me a subir um pouco.
Vejo mais de perto os geoglifos La Tropilla. São obras dos povos pré-hispânicos. São figuras humanas, de animais. São sinais.
Que sinal é este que nos quiseram deixar?
Estes geoglifos ficam para sempre na nossa memória.
A luz é tão intensa que é tudo branco no ecrã da nossa máquina fotográfica. Fotografamos às cegas. Alguma coisa vai ficar. Tanta claridade! Que luz tão intensa!
Mais uma garrafa de água na tenda e dizer adeus àqueles estranhos desenhos.
Regressar a Arica.
Hoje pela calada da noite vou deixar o Chile. O Peru espera-nos.
Não fui ali ao lado à Bolívia – (tive pena).
Dois dias de mar e chegaremos a Lima. Vamos conhecer um pouco da cultura pré-colombiana.
Vou-me embebedar de tantas cores.
Avisto um porto.
Tanto barco de pesca.
Ainda um dia vou embarcar num barco destes.
Vou ser marinheiro, pescador, homem do mar a sério. Vou levar galochas, avental e coragem.
Vou aprender a beijar o salitre na minha pele.
Vou cheirar a peixe.
Vou-me deixar embalar.
Vou cantar enquanto puxo as redes.
Espero ter uma mulher a rezar por mim no porto.
Espero regressar para os seus braços.
Mar, muito mar, mar de navegar.
Havemos de chegar.
Já não vejo peixes.
Só este azul imenso.
Espero as novidades do dia.
Vamos continuar a navegar.
Este meu amado mar. Tanto mar.
Por fim Lima.
Lima, capital deste Peru, destes condores.
Lima colonial.
Lima espanhola.
Lima francesa.
Sento-me no jardim de uma imensa praça colonial. Olho para quem passa e encho os olhos de histórias imensas. Tento que nada me escape, que tudo fique gravado como um filme na minha mente. Estórias para um dia contar. Estórias para um dia inventar.
Compro dois quadros a um pintor de rua e sento-me junto à estátua do engraxador.
Vou-te tocando, Peru.
Beijo a beijo navego teu corpo terra.
Por vezes vejo-te ao longe.
Vamos em busca do Equador.
Vem beijar-me Peru.
Subitamente um caso atrai a atenção de toda a gente. Uma baleia enorme que aparece.
Vai para sul, assim contrariando o nosso caminho.
Vai imperial.
Lindo o seu jacto de água.
Água de benzer o mar.
Entretanto os golfinhos ensaiam uma dança prateada.
Um baile consagrado.
Nós continuamos o nosso caminho para norte.
Acho que ainda vou chegar ao Equador.
A Manta cidade.
Vamos devagar.
Temos tempo.
Manta.
Meu Equador, onde cheguei ainda noite e vi a vida a nascer.
A cidade a sua baía e as suas praias.
Uma cidade que conheci mal. Uma cidade que não me ficou na memória. Algo aconteceu que não vos sei explicar.
Peço perdão.
Equador vou devorar-te se tu não me devorares.
Maria.
Estamos em MonteCristi, Equador. Ali se fazem os famosos chapéus panamás. Sim os panamás de uma palha especial conhecida como toquilla são feitos no Equador.
Foi aí que conheci Maria. Maria faz chapéus. Maria é pequena, muito pequena no tamanho. Mas grande, muito grande na sua arte.
É nesta cidade que é mestra a entrançar a vida. É duro o trabalho. Dobrada sobre si mesmo, o peito apoiado num cepo, lá vai construindo o seu ganha-pão.
Mas ri Maria.
Ri com a falta de alguns dentes e o desalinho de outros. Ri e nós sentimo-nos envolvidos na sua cansada alegria.
Apeteceu-me dar um beijo a Maria. Faltou-me coragem de lho pedir.
Amo-te Maria e todas as Marias que, apesar do mundo que as castiga, riem.
Comprei um chapéu de palha fina que vinha dentro de uma caixa de madeira. Já dei esse chapéu ao meu neto enquanto lhe contava esta história.
Um beijo, Maria.
«Gosto dessa Maria. Gostei sempre desde que me contaste a primeira vez.»
Fala de Isaurinda.
«Sim, linda a Maria. Alegre apesar da cansada vida»
Respondo.
«Lembro-me dessa vossa viagem. Já lá vão mais de dez anos.»
De novo Isaurinda e vai, a alegria estampada no rosto.
Jorge C Ferreira Junho/2023(399)
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Sempre que leio estas tuas viagens fico com água na boca e de tão bem escritas vejo-me lá na vossa sombra, nos vossos olhos a viajar.
Imagino as memórias que tens de tanta viagem. Obrigada por partilhares.
Obrigado Maria Fernanda. Que gratificante é ter aqui as tuas palavras. Devemos ver com todos os sentidos. Tentar sentir a vida, os odores e os sabores. A minha gratidão. Abraço grande
Bela viagem. O deserto com o calor abrasador. A mensagem enigmática dos geoglifos. A luz intensa.
Peru. A cor, o mar, as gentes. Viagem extraordinária até ao Equador. Mar imenso.
Maria, pequena de estatura, mas grande na sua arte. Trabalho duro.
Maria como tantas Marias que lutam diariamente pela sobrevivência. Mulher guerreira.
Gostei desta Maria. Ri para esquecer e dar felicidade.
Maravilhosa forma de escrever e compreender o ser humano.
Obrigada Amigo pela partilha desta viagem extraordinária.
Grande abraço.
Obrigado Eulália. É sempre gratificante a sua presença neste espaço. Viajar é a alegria de conhecer o diferente. A maravilha do enigmático. A surpresa do acontecimento inesperado e todas as Marias que lutam pela vida. A minha gratidão. Abraço grande.
As descobertas, o antes e o agora, viajante do tempo, sem bússola,sem mapa, somente o olhar absorve as coisas e as pessoas. O chamado,o eco dos que te falam e segredam no dormir dos teus sonhos a falarem a mil dialetos, vai,vai por aí,anda e corre como só tu sabes fazer, escreve o nosso mundo com os ventos dos teus olhos, ouve e sente com o olhar, somente no descanso escreve a tua, nossa rota, deixa as tuas pegadas como mapa da tua passagem, a presença,guardamo-la com a essência que nos deste… Obrigada meu querido amigo, acompanharem foi um privilégio. Abraço?
Obrigado Cecília, pelo teu maravilhoso comentário. Viajar é isso tudo. Por vezes só um sonho e la vamos. Correr mundo e conhecer gente. A minha imensa gratidão. Abraço enorme.
Com gosto li e reli.
Meu querido amigo, imaginei-me a conversar consigo, sobre estes apetecíveis lugares que percorreu. Lugares com muita história, de coisas muito antigas e algumas ainda por decifrar. Tanta coisa que gostava de perguntar-lhe. Imagino o deserto, mas nunca esse calor abrasador e essa claridade imensa. Será que a máquina fotográfica, conseguiu captar alguma imagem? Viagem linda, sempre com muito mar, o seu amado mar. Onde ainda habitam golfinhos. E uma baleia o brinda com o seu belo jacto de água.
Ao Perú deixou os seus beijos e seguiu, para o Equador.
Também há Marias em Monte Cristi, que fazem os tradicionais chapéus, panamás.
Mais uma Maria que luta pela vida, como tantas outras e em qualquer parte do mundo. Que de certeza também teria vontade de lhes dar um beijo. Sei que o faria. Meu querido poeta, li com olhos inundados de ternura este texto, que apelida de “notas”. Não o classifico, como notas, mas sim de um soberbo texto, com a sua marca, muito sua.
Sensibilidade e inteligência.
Gostei tanto, amei. Limitei-me a esta simples conversa. Que bom é viajar consigo, sítios bem escolhidos e muito bem observados.
Obrigada, meu querido amigo. Beijinhos.
Obrigado Maria Luiza. Tão bom ler o seu comentário. Temos mesmo de conversar sobre tudo isto. Houve um tempo em que viajei loucamente. Conheci muitas pessoas e fiquei mais gente. Uma maravilha e de uma generosidade imensa o que escreveu. Muito, muito, muito grato. Beijinho
Memórias de momentos sempre presentes, até no pormenor.
Traços de um escrever ofegante, pelo amor diagnosticado em horários precisos.
E o diário de hoje, abre-se nos ventos perfeitos, em sonhos de ontem, mas bem conjugados nos calendários presentes.
Encontro apenas um dizer preciso – PERFEITO!
Grato amigo, pelo teu dom criativo e convidativo de leituras mil, diz o povo num respirar popular, mas inteligente.
O meu grande abraço e um pedido – NUNCA PARES, mesmo que o vermelho proibitivo promova uma paragem simples.
Obrigado José Luís Outono. Meu amigo poeta. A tua presença aqui é tão importante. Sempre assertivas as tuas palavras. A minha gratidão. Abraço forte
Amigo Jorge, aterrei agora mesmo, adorei as viagens. “Para viajar basta existir” ( F. Pessoa).
Senti o calor e a luz do deserto, desfrutei do mar, gostei da Maria. Comprei um chapéu que trouxe de presente.
Obrigada pelas memórias.
Até à próxima.
Abraço
Obrigado Fernanda. Que bom ter viajado também. Consegui uma parte importante que me propunha nesta crónica. Apresentei-lhe a Maria que faz chapéus. Que bom ter gostado. A minha gratidão. Abraço grande.
Lindas recordações das tuas viagens! O Mar, esse Amigo que te acompanha sempre! Amei viajar contigo neste texto bonito! Obrigada Poeta Jorge C Ferreira!
Obrigado Claudina. O mar é companheiro e inspiração. Que bom teres partilhado comigo a viagem. A minha gratidão. Abraço grande
Crónica de Jorge C. Ferreira de 12 junho 2023:
Amigo, que bem nos conta as suas viagens! Parece que estamos lá, que vemos a Maria a entrançar a palha para fazer os panamás… Viajar é maravilhoso! Quando estou triste ou stressada gosto de revisitar de memória as viagens que fiz, recordando detalhes e cheiros. Sempre tão gratificante…
Obrigado Margarida. É isso que tento levar-vos comigo em cada viagem. Viajar é também sonho. Sonho é também viagem. Gratificante é ler aqui um comentário seu. A minha gratidão. Abraço grande